Como pensar em algo que não era eu, que apenas se fazia de eu?
Como admitir que não sou o que pareço ser, toda a certeza, a segurança, a integridade?
Como pedir ajuda para compreender que no fim e desde o começo, sempre fui a mesma pequena, fraca e medíocre, que se deixou acreditar no doce glamour da heroína?
Mas agora, posso me vangloriar na liberdade e no alívio de não ser o que pensava, de não suportar o que pensava ser capaz de suportar, de concretizar o que jamais poderia imaginar que seria suficientemente suja para me permitir
Como humana medíocre posso tudo, não devo explicações nem mesmo a mim
Não há ponto de partida, nem retorno, nem destino
Apenas movimento há
Por mais que tentem me convencer que ser feliz é legal
Por mais que tentem me convencer que o prazer pode ser meu
Sigo eternamente inconformada com o viver, com o drama da existência, do sofrimento, da dor, da culpa, da injustiça, da impotência de uma criança doente
O ensinamento espiritual me salva da insanidade, mas não da inconformidade e nem da vontade profunda de voltar a não ser
Vontade tenho mesmo é de parar de existir para não criar mais confusão, nem plantar mais bosta que um dia certamente não poderei escapar de colher
Tentar compreender, ou ao menos romper, a intrínseca conexão entre tudo e todos, entre consciente e inconsciente, tão além do que se possa imaginar
Tão pouco tempo pra brincar de detetive, tão poucas chances de acertar, tantos métodos para me distrair do que de fato importa
Enquanto escrevo, num quarto de hospital, o que de fato importa definha
Sem motivo aparente, sem justificativa, sem porque, sem entender
Enquanto crio a minha obra e decido a minha arte, o que de fato importa, toma na veia sangue de outro e caminha em direção certa até à morte
Ora...de novo a senhora por aqui? Mas tem apreciado muito me visitar e aos meus...
Depois ainda querem que eu admire e aproveite a vida
Como se há ladrão por perto?
Como relaxar e me deliciar com os malditos prazeres mundanos, se a senhora é a mais presente e ativa entre todos?
Talvez por aqui é bem recebida...costumo preparar chá com biscoitos...
Se tudo mesmo vai se acabar, por que brincar de ser feliz?
Não entendo esse teatro idiota e preferia estar fora dele
Mas não na plateia
Preferia simplesmente não estar para não ter nem que pagar ingresso, nem dar pro diretor
Escolha? Não me deram
Sigo então tentando me convencer que isso aqui presta e garanto não me afogar enquanto vestir o colete salva-vidas da arte
Só mesmo fazendo piada de todo esse circo pra sobreviver a ele
Preguiça do operacional...
Do vestir, do comer, do me transportar, do usar guarda-chuva e óculos
Tudo parece arcaico, lento, sem sentido, pura perda de tempo e energia
Vamos logo ao ponto, fazer o que deve ser feito e vazar
Daí vem a voz do além e anuncia: “ Não há nada a ser feito...”
Então, tira a gente daqui, caramba!
Sei, isso já sei também...que prefiro criar, produzir a consumir o que já foi criado, produzido
Arrogância, talvez, angústia ou simplesmente distração
Praticar o exercício de ver além das aparências, em todas as circunstâncias, consome uma incrível quantidade de energia
Energia essa que garante que eu continue a me mover em alguma direção, qualquer uma
Se não fosse esse exercício de extrair o ensinamento por trás de tudo e todos, não haveria graça no viver para mim
Sou eternamente grata àqueles que me orientam e apontam o único caminho possível
O da verdade
Mas então o meu destino, livremente escolhido por mim, é mesmo nadar sempre e preferencialmente contra a maré, no contra-fluxo de milhares de seres?
Rio, 24/09/2010